domingo, 31 de julho de 2011
A poesia de Gaspara Stampa II
CXLIV
Ricorro a voi, luci beate e dive,
a voi che sète le mie fide scorte,
da poi che'l cielo, Amor, fortuna e sorte
sono ai soccorsi miei sì tardi e schive.
Se per me in voi si spera e 'n voi si vive,
come avien che per voi pur si comporte
a star lunge da me quest'ore corte,
che 'l mio ben la pietà vostra prescrive?
Deh non state oggimai da me più lunge!
Fate che questo breve spazio sia
concesso a me dávervi sempre presso;
ché l'ardente disio tanto mi punge,
che certo finirá la vita mia,
se non m'è 'l vagheggiarvi ognor concesso.
CXLIV
Recorro a vós, luzes beatas e divas,
a vós que soides as minhas fidas reservas,
desde que céu, Amor, fortuna e sorte
são em meu socorro tão tardas e esquivas.
Se para mim em vós se espera e em vós se vive,
como pode suceder que vós suporteis
estar longe de mim durante estas horas curtas,
que o meu bem a piedade vossa prescreve?
Deus, não estaide nunca mais de mim longe!
Fazei com que este breve espaço seja
concedido a mim de ter-vos sempre junto;
que o ardende desejo a tanto me obriga,
que certo finirá a vida minha,
se não me for o contemplar-vos sempre concedido.
(continua)
sábado, 30 de julho de 2011
A poesia de Gaspara Stampa I
Procurando na PORBASE ,não encontrei nenhuma edição das Rime e muito menos traduções, pelo que julgo ser a presente uma primeira tradução para língua portuguesa. Sendo uma das vozes femininas que mais me agradam é provável que a esta se sucedam outras...
I
Voi ch'ascoltate in queste meste rime,
in questi mesti, in questi oscuri accenti
il suon degli amorosi miei lamenti
e delle pene mie tra l'altre prime,
ove fia chi valor apprezzi e stime,
gloria, non che perdon, de' miei lamenti
spero trovar fra le ben nate genti,
poi che la lor cagione è si sublime.
E spero ancor che debba dir qualcuna:
-- Felicissima lei, da che sostenne
per sì chiara cagion danno sì chiaro!
Deh, perché tant'amor, tanta fortuna
per sì nobil signor a me non venne,
ch'anch'io n'andrei con tanta donna a paro?
I
Vós que escutais nestas suaves rimas,
nestes suaves, nestes obscuros acentos,
o som dos amorosos meus lamentos
e das penas minhas entr'as outras primas,
onde haja quem valor aprecie e estime,
glória, não o perdão, dos meus lamentos
espero achar entre as bem nascidas gentes,
pois que a sua causa é tão sublime.
E espero ainda que deva dizer alguma:
-- Felicíssima sedes, pois que suportas
por tão clara causa dano tão claro!
Deus, porquê tant'amor, tanta fortuna,
por tão nobre senhor a mim não vem,
que também eu não iria com tanta mulher a par?
(continua)
José Duro: Em Busca
Ponho os olhos em mim, como se olhasse um estranho,
E choro de me ver tão outro, tão mudado…
Sem desvendar a causa, o íntimo cuidado
Que sofro do meu mal — o mal de que provenho.
Já não sou aquele Eu do tempo que é passado,
Pastor das ilusões perdi o meu rebanho,
Não sei do meu amor, saúde não na tenho,
E a vida sem saúde é um sofrer dobrado.
A minh’alma rasgou-ma o trágico Desgosto
Nas silvas do abandono, à hora do sol-posto,
Quando o azul começa a diluir-se em astros…
E à beira do caminho, até lá muito longe,
Como um mendigo só, como um sombrio monge,
Anda o meu coração em busca dos seus rastros…A poesia de Liutprando de Cremona - II
Nubibus omnipotens Heloim cum condere Phoebi
lumina chrisocomi venerandus coeperit atris
vertice cumque polus summo clangore remugit
fulgura crebra volant throno demissa Tonantis
ignea: mox trepidant qui nigrum in candida vertunt
conscia tum metuunt scelerum sulcare suorum
pectora Vulcano pariter ruitura superno
haud secus e vacuis volitant concussa pharetris
spicula scinduntur validae quis terga loricae.
Concutit ipsa ruens segetes cum grando superba
fit sonitus clangorque simul per tecta sonorus
sic galeae strictis reboant tunc ensibus ictae
corpora sicque cadunt mutuis confossa sagittis.
Quando o omnipotente e venerando Elói a ocultar começa
entre negras núvens os raios do dourado Febo
e o céu do alto ruge de intenso fragor
lançados do trono do Tonante voam bastos raios
de fogo: logo tremem os que o negro em alvo mutam;
temem então que firam as almas cônscias
dos próprios erros, pares a Vulcano que do alto fere:
ou não voltejam de já vazias aljavas lançados
dardos, capazes do dorso da válida couraça quebrar.
Quando do alto o granizo as colheitas fustiga,
sonoro e igual fragor nos tectos soa:
assim de desembainhadas espadas os elmos batidos então ressoam
assím os corpos tombam das mútuas flechas perfurados.
Trata-se de uma descrição da batalha de Augusta, que decorreu em Junho de 910 no vale do Lech, e que opôs Ludovico IV, A Criança, às tropas magiares e que se concluiu com a derrota do primeiro.
sexta-feira, 29 de julho de 2011
José Saramago: Se não tenho outra voz
Se não tenho outra voz que me desdobre
...Em ecos doutros sons este silêncio,
É falar, ir falando, até que sobre
A palavra escondida do que penso.
É dizê-la, quebrado, entre desvios
De flecha que a si mesma se envenena,
Ou mar alto coalhado de navios
Onde o braço afogado nos acena.
É forçar para o fundo uma raiz
Quando a pedra cabal corta caminho,
É lançar para cima quanto diz
Que mais árvore é o tronco mais sozinho.
Ela dirá, palavra descoberta,
Os ditos do costume de viver:
Esta hora que aperta e desaperta,
O não ver, o não ter, o quase ser
in OS POEMAS POSSÍVEIS
A poesia de Liutprando de Cremona - I
Liutprando ( Bispo de Cremona) (Pavia, 920 ? - 972) foi um historiador, bispo e diplomata ao serviço do Sacro Império Romano e autor de obras em latim medieval. Liutprando de Cremona deixou-nos três obras de cariz histórico: a Antapodosis, seu rerum per Europam gestarum, Libri VI (relato histórico, com especial incidência na península itálica e cobrindo o arco de tempo que vai de 887 a 949), a Relatio de legatione Constantinopolitana ad Nicephorum Phocam (relato da sua embaixada junto do Basileus bizantino Nicéforo Phocas e que cobre os anos de 968-69) e, por último, o Liber de rebus gestis Ottonis Magni Imperatoris, também conhecido pelo nome de Historia Ottonis (crónica de seu patrono, o imperador Oto I, cobrindo os anos 960 a 64). Convém aqui precisar uma questão: o conceito de história para um homem do século X é substancialmente diverso daquele a que estamos habituados hoje. Esta afirmação é válida quer quanto ao conteúdo, à matéria narrada e aos pressupostos histórico-culturais que presidiram à sua elaboração; quer quanto à forma, ou melhor, há diversidade de formas usadas na sua elaboração. Assim sendo, não é de espantar que, inseridos no corpo narrativo da Antapodosis e, já em menor número, da Relatio de legatione Constantinopolitana ad Nicephorum Phocam, o leitor possa deparar com momentos de poesia, de métrica muito irregular, mas que, pelo seu carácter inovador, constituem um pequeno tesouro esquecido da literatura europeia.
Falamos de esquecimento e com justa razão. Efectuando uma rápida pesquisa no PORBASE encontramos um total de quatro registos relativos à obra de Liutprando de Cremona. A estes se poderia juntar a presença em Portugal de edições dos Monumenta Germaniae Historica. Nenhuma edição portuguesa, nenhuma edição facilmente acessível. A presente tradução destes fragmentos reveste-se então de uma oportunidade única de dar a conhecer a obra de tão prodigiosa figura da história da Europa. O critério adoptado será o de procurar um texto tão fluido quanto possível no estrito respeito do sentido original. Devido à enorme diferença entre as duas línguas e entre os esquemas métricos não serão tidas em conta aqui essas questões. Tal não implica que não se procure manter uma mancha gráfica semelhante à do texto original que republicamos. Agradecem-se sugestões de tradução que possam levar à melhoria das mesmas.
Cada um dos excertos traduzidos será igualmente sucedido por uma breve mas necessária contextualização histórica.
Ipse qui condam superare gentes
impias bello solitus cruento
novimus nunc rex dederis popello
morte tu quantas propria ruinas.
Turba certatim viduata karo
rege iam cesset lacrimare quando
alter exurgit venerandus orbi
filius patri similis cluenti
Otto rex gentes dicione magna
qui premet pacemque feret beatam.
Quicquid Heinrici periit recessu
praestitit claro populis hic ortu
blandus et mitis patiensque sanctis
pestifer durus rabidusque saevis.
Bella nonnullis tibi sunt gerenda
ex quibus nomen referens in astra
cuncta calcabis pedibus per orbem
quae premit tardus radians Bootes
et quibus nomen dedit Hesper almus
Lucifer rursus vocitatus idem
surgit Eoo properans corusco.
E tu que superar as gentes
ímpias de cruenta guerra costumavas,
ora sabemos, ó Rei, quanto ao povo deste
com tua morte grandes males.
Que a competidora turba viúva do caro
rei ora cesse de chorar, que
outro de veneranda orbe digno inicia,
filho do pai famoso par,
Oto rei, que de magna autoridade as gentes
submeterá e paz serena fará.
Quanto com a morte de Enrico feneceu
ao povo devolveu, de nobre linhagem,
doce, suave e paciente com os pios,
pestífero, duro e raivoso com os ímpios.
Por ti as guerras geradas contra tantos,
cujos nomes aos astros elevando
com os pés calcarás por toda a Orbe
que o lento Boieiro cobre radioso
e a quem Espero o nome deu, o grande
Lucífer por sua vez chamado
s'apresta a surgir do coruscante Eoo.
O texto refere-se ao falecimento de Enrico da Saxónia em 936 e à eleição de Oto I como Rei dos Germanos e futuro Imperador do Sacro Império Romano. O Boieiro é uma constelação, por Espero entenda-se a designação mitológica do Poente, por Lúcifer a estrela da manhã e Eoo designa um dos cavalos que puxam o carro do sol conduzido mitologicamente por Hélio.
quinta-feira, 28 de julho de 2011
JohnSó: ODE A DURÃO BARROSO
Entre o moleque maoísta,
e o tubarão capitalista,
está o sabujo socialista
que, ao deixar a capa de vassalo,
dita a ementa imperialista.
E se o fizerem cair do cavalo
vai esmolar o terrorista.
Seguramente é mau juíz
mas sempre bom contorcionista.
A pintura de Susana Dias
Não tendo autorização da artista não irei revelar aqui a sua imagem tanto mais que o quadro me não pertence. Convido-vos, contudo, a apreciarem uma amostra significativa da última exposição individual da pintora, realizada em Outubro de 2007 em Lisboa e de quem se espera com ânsia a apresentação de novos trabalhos.
Recordo-me que a exposição se encontrava distribuída em dois grandes blocos, pintura a acrílico e tinta da china. Em ambos se respirava uma sensualidade inquietante, em que os corpos, num abandono tenso reflectem as sombras das almas que revestem. Mas, longe de nos inquietar, são por nós reconhecidos como familiares devido a recriarem obras igualmente familiares num cenário íntimo de interiores. Um pouco como se as intimidades habitacionais ajudassem a reconsiderar o interior dos seres que os povoam.
Sou detentor de um quadro de Susana Dias que, por falta de paredes cá por casa, se encontra emprestado ao Shiado Hostel. Trata-se de uma pequena e acolhedora unidade hoteleira onde de forma informal se promove, no centro de Lisboa e em pleno coração do Chiado, a troca de culturas e experiências assim como a divulgação do que temos de melhor tanto na arte de bem receber como através da exposição de obras de pintores portugueses contemporâneos. Para mais informações o link segue no final.
Cesário Verde: Sentimento de um Ocidental
O céu parece baixo e de neblina,
O gás extravasado enjoa-me, perturba-me;
E os edifícios, com as chaminés, e a turba
Toldam-se duma cor monótona e londrina.
Batem os carros de aluguer, ao fundo,
Levando à via-férrea os que se vão. Felizes!
Ocorrem-me em revista, exposições, países:
Madrid, Paris, Berlim, Sampetersburgo, o mundo!
Semelham-se a gaiolas, com viveiros,
As edificações somente emadeiradas:
Como morcegos, ao cair das badaladas,
Saltam de viga em viga, os mestres carpinteiros.
Voltam os calafates, aos magotes,
De jaquetão ao ombro, enfarruscados, secos,
Embrenho-me a cismar, por boqueirões, por becos,
Ou erro pelos cais a que se atracam botes.
E evoco, então, as crónicas navais:
Mouros, baixéis, heróis, tudo ressuscitado
Luta Camões no Sul, salvando um livro a nado!
Singram soberbas naus que eu não verei jamais!
E o fim da tarde inspira-me; e incomoda!
De um couraçado inglês vogam os escaleres;
E em terra num tinido de louças e talheres
Flamejam, ao jantar, alguns hotéis da moda.
Num trem de praça arengam dois dentistas;
Um trôpego arlequim braceja numas andas;
Os querubins do lar flutuam nas varandas;
Às portas, em cabelo, enfadam-se os lojistas!
Vazam-se os arsenais e as oficinas;
Reluz, viscoso, o rio, apressam-se as obreiras;
E num cardume negro, hercúleas, galhofeiras,
Correndo com firmeza, assomam as varinas.
Vêm sacudindo as ancas opulentas!
Seus troncos varonis recordam-me pilastras;
E algumas, à cabeça, embalam nas canastras
Os filhos que depois naufragam nas tormentas.
Descalças! Nas descargas de carvão,
Desde manhã à noite, a bordo das fragatas;
E apinham-se num bairro aonde miam gatas,
E o peixe podre gera os focos de infecção!
II
NOITE FECHADA
Toca-se às grades, nas cadeias. Som
Que mortifica e deixa umas loucuras mansas!
O Aljube, em que hoje estão velhinhas e crianças,
Bem raramente encerra uma mulher de "dom"!
E eu desconfio, até, de um aneurisma
Tão mórbido me sinto, ao acender das luzes;
À vista das prisões, da velha Sé, das Cruzes,
Chora-me o coração que se enche e que se abisma.
A espaços, iluminam-se os andares,
E as tascas, os cafés, as tendas, os estancos
Alastram em lençol os seus reflexos brancos;
E a Lua lembra o circo e os jogos malabares.
Duas igrejas, num saudoso largo,
Lançam a nódoa negra e fúnebre do clero:
Nelas esfumo um ermo inquisidor severo,
Assim que pela História eu me aventuro e alargo.
Na parte que abateu no terremoto,
Muram-me as construções rectas, iguais, crescidas;
Afrontam-me, no resto, as íngremes subidas,
E os sinos dum tanger monástico e devoto.
Mas, num recinto público e vulgar,
Com bancos de namoro e exíguas pimenteiras,
Brônzeo, monumental, de proporções guerreiras,
Um épico doutrora ascende, num pilar!
E eu sonho o Cólera, imagino a Febre,
Nesta acumulação de corpos enfezados;
Sombrios e espectrais recolhem os soldados;
Inflama-se um palácio em face de um casebre.
Partem patrulhas de cavalaria
Dos arcos dos quartéis que foram já conventos;
Idade Média! A pé, outras, a passos lentos,
Derramam-se por toda a capital, que esfria.
Triste cidade! Eu temo que me avives
Uma paixão defunta! Aos lampiões distantes,
Enlutam-me, alvejando, as tuas elegantes,
Curvadas a sorrir às montras dos ourives.
E mais: as costureiras, as floristas
Descem dos magasins, causam-me sobressaltos;
Custa-lhes a elevar os seus pescoços altos
E muitas delas são comparsas ou coristas.
E eu, de luneta de uma lente só,
Eu acho sempre assunto a quadros revoltados:
Entro na brasserie; às mesas de emigrados,
Ao riso e à crua luz joga-se o dominó.
III
AO GÁS
E saio. A noite pesa, esmaga. Nos
Passeios de lajedo arrastam-se as impuras.
Ó moles hospitais! Sai das embocaduras
Um sopro que arrepia os ombros quase nus.
Cercam-me as lojas, tépidas. Eu penso
Ver círios laterais, ver filas de capelas,
Com santos e fiéis, andores, ramos, velas,
Em uma catedral de um comprimento imenso.
As burguesinhas do Catolicismo
Resvalam pelo chão minado pelos canos;
E lembram-me, ao chorar doente dos pianos,
As freiras que os jejuns matavam de histerismo.
Num cutileiro, de avental, ao torno,
Um forjador maneja um malho, rubramente;
E de uma padaria exala-se, inda quente,
Um cheiro salutar e honesto a pão no forno.
E eu que medito um livro que exacerbe,
Quisera que o real e a análise mo dessem;
Casas de confecções e modas resplandecem;
Pelas vitrines olha um ratoneiro imberbe.
Longas descidas! Não poder pintar
Com versos magistrais, salubres e sinceros,
A esguia difusão dos vossos reverberos,
E a vossa palidez romântica e lunar!
Que grande cobra, a lúbrica pessoa,
Que espartilhada escolhe uns xales com debuxo!
Sua excelência atrai, magnética, entre luxo,
Que ao longo dos balcões de mogno se amontoa.
E aquela velha, de bandós! Por vezes,
A sua traîne imita um leque antigo, aberto,
Nas barras verticais, a duas tintas. Perto,
Escarvam, à vitória, os seus mecklemburgueses.
Desdobram-se tecidos estrangeiros;
Plantas ornamentais secam nos mostradores;
Flocos de pós-de-arroz pairam sufocadores,
E em nuvens de cetins requebram-se os caixeiros.
Mas tudo cansa! Apagam-se nas frentes
Os candelabros, como estrelas, pouco a pouco;
Da solidão regouga um cauteleiro rouco;
Tornam-se mausoléus as armações fulgentes.
"Dó da miséria!... Compaixão de mim!..."
E, nas esquinas, calvo, eterno, sem repouso,
Pede-me sempre esmola um homenzinho idoso,
Meu velho professor nas aulas de Latim!
IV
HORAS MORTAS
O tecto fundo de oxigénio, de ar,
Estende-se ao comprido, ao meio das trapeiras;
Vêm lágrimas de luz dos astros com olheiras,
Enleva-me a quimera azul de transmigrar.
Por baixo, que portões! Que arruamentos!
Um parafuso cai nas lajes, às escuras:
Colocam-se taipais, rangem as fechaduras,
E os olhos dum caleche espantam-me, sangrentos.
E eu sigo, como as linhas de uma pauta
A dupla correnteza augusta das fachadas;
Pois sobem, no silêncio, infaustas e trinadas,
As notas pastoris de uma longínqua flauta.
Se eu não morresse, nunca! E eternamente
Buscasse e conseguisse a perfeição das cousas!
Esqueço-me a prever castíssimas esposas,
Que aninhem em mansões de vidro transparente!
Ó nossos filhos! Que de sonhos ágeis,
Pousando, vos trarão a nitidez às vidas!
Eu quero as vossas mães e irmãs estremecidas,
Numas habitações translúcidas e frágeis.
Ah! Como a raça ruiva do porvir,
E as frotas dos avós, e os nómadas ardentes,
Nós vamos explorar todos os continentes
E pelas vastidões aquáticas seguir!
Mas se vivemos, os emparedados,
Sem árvores, no vale escuro das muralhas!...
Julgo avistar, na treva, as folhas das navalhas
E os gritos de socorro ouvir, estrangulados.
E nestes nebulosos corredores
Nauseiam-me, surgindo, os ventres das tabernas;
Na volta, com saudade, e aos bordos sobre as pernas,
Cantam, de braço dado, uns tristes bebedores.
Eu não receio, todavia, os roubos;
Afastam-se, a distância, os dúbios caminhantes;
E sujos, sem ladrar, ósseos, febris, errantes,
Amareladamente, os cães parecem lobos.
E os guardas que revistam as escadas,
Caminham de lanterna e servem de chaveiros;
Por cima, as imorais, nos seus roupões ligeiros,
Tossem, fumando sobre a pedra das sacadas.
E, enorme, nesta massa irregular
De prédios sepulcrais, com dimensões de montes,
A Dor humana busca os amplos horizontes,
E tem marés, de fel, como um sinistro mar!
A arte de Jorge Oliveira
Todos os dias, da janela da sala, ao entardecer,
quando os primeiros farrapos de noite se insinuam pela cidade,
quando os bandos de estorninhos transformam a longa palmeira em árvore canora,
da janela da sala me chega o buliçoso vozear dos excluídos.
Acorrem à distribuição de alimentos.
No sagrado de Arroios se atropelam, insultam, namoram, comem;
cada dia são mais. Alguns andrajosos,
outros loucos,
emigrantes do sonho etéreo de um Portugal de alcatrão e cimento,
gentes que pela farpela se vê que já conheceram melhores dias,
marginais,
e idosos, tantos e tantos idosos.
Uns chegam receosos, outros tímidos,
há-os bêbedos, drogados, institucionalizados, fugidos, resignados,
só há que escolher a cor, o modelo, o feitio, o consumo.
Só sei que o supermercado da miséria me desperta
um já não tão absurdo desejo de sofrer.
A fotografia é de Jorge Oliveira
"Roubada" ao meu caro amigo Gonçalo Oliveira
quarta-feira, 27 de julho de 2011
David Mourão-Ferreira: Soneto do amor difícil
Soneto do amor difícil
A praia abandonada recomeça
logo que o mar se vai, a desejá-lo:
é como o nosso amor, somente embalo
enquanto não é mais que uma promessa...
Mas se na praia a onda se espedaça,
há logo nostalgia duma flor
que ali devia estar para compor
a vaga em seu rumor de fim de raça.
Bruscos e doloridos, refulgimos
no silêncio de morte que nos tolhe,
como entre o mar e a praia um longo molhe
de súbito surgido à flor dos limos.
E deste amor difícil só nasceu
desencanto na curva do teu céu.
terça-feira, 26 de julho de 2011
Carta a um Linfoma - Folhetim em forma epistolar (1º episódio)
Começo a presente carta por te agradecer o teres passado a fazer parte da minha vida. Certamente não recebes frequentemente tal agradecimento por parte daqueles a quem entraste de rompante pela porta e pela vida dentro; mas isso pouco importa agora. O que importa é que fazes agora parte de mim e me deste a possibilidade de te contar entre os meus mais íntimos, senão o mais íntimo daqueles que na minha esfera gravitam.
Seguramente perguntarás por que o faço, e não deixas de ter uma certa razão, meu caro Hodgkin, mas a verdade é que sentimentos há que são únicos e irrepetíveis e tu foste capaz de me fazer ir além, de atingir um estado de alma que até hoje nunca tinha experimentado. E olha que sou um que se pode gabar de ter vivido uma vida assaz turbulenta de inúmeras experiências feita, como de resto já sabes, lendo-me nas entranhas.
Uma coisa tenho de reconhecer, sabes entrar em cena. Durante quase dois anos te insinuas-te, escondendo-te, tentando passar despercebido como o transeunte com que me cruzo quotidianamente na rua sem que lhe repare nas feições. De tempos a tempos ias lançando uma ténue pista disfarçada por alguns dias de febre, que logo eram justificadas com a deficiente manutenção dos ares condicionados no local de trabalho. E lá surgiu um magnânimo diagnóstico de tuberculose ganglionar que te deixo espaço e tempo livres para fruíres da tua clandestinidade. E assim se passaram quase dois anos. Suspense mantido com rigor de mestre, meu caro Hodgkin! O que é um facto é que quando me preparava para ir receber a tuberculose à porta da frente, me apareceste tu, meu caro Hodgkin. Só não te disse que entrasses porque tu és um tipo que não faz cerimónia e já tinhas entrado...
(continua)
Lou Reed: Um dia perfeito
Just a perfect day,
Drink Sangria in the park,
And then later, when it gets dark,
We go home.
Just a perfect day,
Feed animals in the zoo
Then later, a movie, too,
And then home.
Oh it's such a perfect day,
I'm glad I spent it with you.
Oh such a perfect day,
You just keep me hanging on,
You just keep me hanging on.
Just a perfect day,
Problems all left alone,
Weekenders on our own.
It's such fun.
Just a perfect day,
You made me forget myself.
I thought I was someone else,
Someone good.
Oh it's such a perfect day,
I'm glad I spent it with you.
Oh such a perfect day,
You just keep me hanging on,
You just keep me hanging on.
You're going to reap just what you sow,
You're going to reap just what you sow,
You're going to reap just what you sow,
You're going to reap just what you sow...
Lou Reed
Transformer (1972)
Um dia perfeito
Foi um dia perfeito
bebemos sangria no parque,
e depois, mais tarde, quando escureceu fomos para casa
Foi um dia perfeito
demos de comer aos animais no zoo
depois, mais tarde, fomos ao cinema e em seguida voltámos para casa
Oh, foi um dia tão perfeito
Estou feliz por o ter passado contigo
Oh, um dia tão perfeito
manténs-me ancorado a ti
manténs-me ancorado a ti
Foi um dia perfeito
todos os problemas ficaram para trás
Oh um dia tão perfeito
ser turista de fim-de-semana por conta própria, é tão divertido
Apenas um dia perfeito
fizete-me esquecer o que sou
pensei que era outra pessoa, uma pessoa boa
Oh, foi um dia tão perfeito
Estou feliz por o ter passado contigo
Oh, um dia tão perfeito
manténs-me ancorado a ti
manténs-me ancorado a ti
O que se colhe é o que se semeia,
O que se colhe é o que se semeia,
O que se colhe é o que se semeia,
O que se colhe é o que se semeia...
tradução de Luís Maio
José Carlos Ary dos Santos: Poeta Castrado, Não!
Serei tudo o que disserem
por inveja ou negação:
cabeçudo dromedário
fogueira de exibição
teorema corolário
poema de mão em mão
lãzudo publicitário
malabarista cabrão.
Serei tudo o que disserem:
Poeta castrado não!
Os que entendem como eu
as linhas com que me escrevo
reconhecem o que é meu
em tudo quanto lhes devo:
ternura como já disse
sempre que faço um poema;
saudade que se partisse
me alagaria de pena;
e também uma alegria
uma coragem serena
em renegar a poesia
quando ela nos envenena.
Os que entendem como eu
a força que tem um verso
reconhecem o que é seu
quando lhes mostro o reverso:
Da fome já não se fala
é tão vulgar que nos cansa
mas que dizer de uma bala
num esqueleto de criança?
Do frio não reza a história
a morte é branda e letal
mas que dizer da memória
de uma bomba de napalm?
E o resto que pode ser
o poema dia a dia?
Um bisturi a crescer
nas coxas de uma judia;
um filho que vai nascer
parido por asfixia?!
Ah não me venham dizer
que é fonética a poesia!
Serei tudo o que disserem
por temor ou negação:
Demagogo mau profeta
falso médico ladrão
prostituta proxeneta
espoleta televisão.
Serei tudo o que disserem:
Poeta castrado não!
José Carlos Ary dos Santos
segunda-feira, 25 de julho de 2011
2 Poemas de Ievgueni Ievtuchenko
A presente tradução é igualmente dedicada ao meu amigo João Só que hoje comemora o seu aniversário.
Monologo dell'uomo di dopodomani
Non avevano un partito Adamo e Eva,
l'arca fu ideata dall'apartitico Noè.
Tutti i partiti, con sorrisetto maligno,
l'inventò il diavolo -- ha cattivo gusto.
E forse nel cuore della mela stessa,
qual verme era rinchiusa -- verme e serpente in una --
la politica -- professione di origine diabolica --
e gli uomini sono inverminiti poi.
La politica inventò la polizia,
la politica inventò i capi,
contò la persona viva con l'unità
e suddivise gli uomini in partiti.
Dov'è della vedova il partito, del mutilato, del pellegrino,
del bambino e della famiglia il partito dov'è?
Dov'è il confine tra Magadan e Majdanek,
e tra Oswiecim e Songmi?
Un giorno, un giorno, un giorno,
ai trisnipoti dei tempi odierni tutti i partiti
verrano a mente come remota cosa,
come selvaggia, stragrande Babilonia.
E un mondo ci sarà senza mutilati sul sagrato,
senza storpi morali al potere,
e un unico partito in esso:
il suo semplice nome --uomo.
Monólogo do homem de depois de amanhã
Não tinham um partido Adão e Eva,
a arca foi ideada pelo apartidário Noé.
Todos os partidos, com um sorriso maligno,
inventou-os o diabo -- que tem mau gosto.
E talvez no coração da própria maçã,
qual verme estava encerrada -- verme e serpente em uma --
a política -- profissão de origem diabólica --
e os homens criaram bicho então.
A política inventou a polícia,
a política inventou os chefes,
contou a pessoa viva com a unidade
e subdividiu os homens em partidos.
Onde está da viúva o partido, do mutilado, do peregrino,
da criança e da família o partido onde está?
Onde é a fronteira entre Magadan e Majdanek,
e entre Oswiecim e Songmi?
Um dia, um dia, um dia,
aos trinetos dos tempos hodiernos todos os partidos
ocorreram à mente como remota coisa,
como selvangem, enormíssima Babilónia.
E um mundo existirá sem mutilados no sagrado,
sem estorpiados morais no poder,
e num único partido nele:
o seu simples nome --homem.
(escrita em 1972, publicada em 1991)
Formica afgana
Giace un ragazzo russo sulla terra afgana.
Lungo un suo zigomo avanza formica-musulmana.
Da giorni il morto non si rade. Farsi strada è fatica...
A lui con esile voce sussurra la formica:
«tu non sai dove esattamente per le ferite sei spirato.
Questo solo sai -- da qualche parte è stato, presso l'Iran.
Perché mai comparisti con l'arma contro di noi,
tu che qui per prima volta sentisti la parola "islam"?
Alla nostra patria -- di per sé scalza e indigente,
tu che cosa darai -- la fila per un niente?
Venti milioni di morti non vi bastano ancora,
per volercene aggiungere ora?»
Giace un ragazzo russo sulla terra afgana.
Lungo un suo zigomo avanza formica-musulmana,
e vuole le ortodosse consimili pregare,
ché il ragazzo sollevino, riescano a rianimare.
Ma nella patria a nord, di vedove e orfani,
sono rimaste in poche tali formiche.
Formiga afegã
Jaz um rapaz russo na terra afegã.
Ao longo do seu malar avança a formiga-muçulmana.
São já dias que o morto não se barbeia. Fazer estrada é fadiga...
A ele com débil voz sussurra a formiga:
«tu não sabes onde exactamente de feridas expiraste.
Isto apenas sabes -- em qualquer parte foi, junto ao Irão.
Porque compareceste com a arma contra nós,
tu que aqui pela primeira vez ouviste a palavra "islão"?
À nossa pátria -- de per si descalça e indigente,
que coisa darás -- a bicha para um nada?
Vinte milhões de mortes te não bastam ainda,
para querer juntar-lhe outros agora?»
Jaz um rapaz russo na terra afegã.
Ao longo do seu malar avança a formiga-muçulmana,
e quer as ortodoxas congéneres rogar,
que o rapaz ergam, consigam reanimar.
Mas na pátria a Norte, de viúvas e orfãos,
poucas ficaram de tais formigas.
(escrita em 1983, publicada em 1990)
sábado, 23 de julho de 2011
Um excerto de Cesare Pavese
A nós o vale levava-nos a um vinhedo quase plano, cercada por choupos. Que coisa lá fazíamos até à noite, não o sei. Olháva-mos para a ponta das árvores. Eu dizia a Gosto que no mar nunca acendem fogueiras, porque o mar é plano, e deitado na erva aborrecia-me a olhar para as núvens. Havia também grilos naquela vinha, e teria querido ser um deles para aí ficar à noite e aí me encontrar de manhã com as primeiras luzes, quando o sol é ainda frio. O sol nasce para nós por detrás das colinas baixas, lá onde o avô do Gosto tinha visto em rapaz o mar.
Que o mar fosse daquela parte, tinha-o dito ao Gosto. Nos dias de tempestade, era lá que clareava e que o sol voltava a bater como sobre um grande campo de flores, enquanto das nossas partes gotejava ainda. Eu ao mar imaginei-o sempre como um céu sereno visto por detrás da água. O estradão que desce para aquelas colinas não é uma estrada de campo; conduz para fora do vale, para uma planície que desce sempre, que tem árvores que parecem jardins. Logo na curva, depois de desembocar no vale, depois da ponte de ferro, está a casinha da Piana que tem uma varanda com gerânios. Alí não há vinhas nem bosques nem estábulos; os carros de bois não sobem por aí; sobem ao invés velozmente as carroças e comitivas com guarda-sóis.
Durante toda a noite de S. João, Gosto tinha passeado pelo povoado e eu não tinha podido irporque em nossa casa os fogos veem-se do terraço. Gosto esperava-me em baixo, na estrada, e mostrávamos um ao outro gritando as fogueiras mais longínquas e as maiores. Mas depois passou a banda que ia para a aldeia - lá estavam todos, até o Cândido - e ie eu agarrava-me às grades e chamava-os; Cândido parou para cumprimentar as minhas irmãs e rir; depois retomaram a fila tocando, e com eles Gosto, e lá foram para a praça e por toda a noite se ouviu o clarinete de Cândido e trombones e guitarras e cantar em voz alta, especialmente as mulheres. Nós fomos dormir que já as últimas fogueiras se extinguiam nas colinas negras, chorava de raiva na cama, mas as vozes difusas dos bêbedos e dos cães fizeram-me pensar na minha vinha do vale e nas carroças e colinas que no dia seguinte reveria à vontade.
No dia seguinte, em vez, não fomos para além das nogueiras, e a Gosto a avó dele apontava-me como exemplo. Gosto ria. Em minha casa diziam-me que o tomasse como exemplo, só no mundo com a avó, era quase toda a família. Não serve contar agora o que havíamos feito no colégio em Alba. Não me criam. Diziam e dizem que o Gosto é mais homem do que eu. Em minha casa desconhecem o que diz.
Contudo, a ideia do mar veio-me a mim, não a ele. O Gosto não sabe o que seja estar diante de uma casa, e olhá-la até que esta não pareça mais uma casa. O Gosto é tão senhor de si que faz tudo o que lhe dizem, mas ele só por si não chega lá. Ainda agora não quer acreditar quando lhe explico que a estrada não tem fim, como não têem fim as linhas férreas, e de aldeia em aldeia prosseguem enquanto há terra sem que se interrompa nunca. Diz que, se assim fosse, as pessoas não deixariam de caminhar e todos dariam a volta ao mundo. E na nossa estrada passariam continuamente estrangeiros de todos os lugares. «Todas as estradas acabam no mar», dizia-lhe «onde estão os portos. De lá embarca-se para as ilhas, onde as estradas recomeçam.»
Não estava convencido de que para ir ao mar bastasse encaminhar-se. «É necessário conhecer a estrada», dizia. «Mas a estrada é sabida. Segue a que vai para a Piana.» «Será longe?»«Se das Ca' Rosse o teu avô o viu.» «Há quantos anos o viu?»
Um dia fomos à loja do carreteiro que nos gozava por não sabermos andar descalços. Parei na soleira e quase nada vi noa escuridão dos fornos, mas ouvi malhar no ferro e Pietro perguntou-me se ia à escola com o Gosto. Disse-nos que com a nossa idade tinha já atravessado as montanhas para ir trabalhar e que coisa sabíamos fazer nós? Apercebi-me então que nada sabíamos fazer. Naquele momento Pietro tinha deixado de malhar, e Gosto dizia: «Nós nascemos calçados». «Assim é», disse Pietro sem se irritar. «Nascesteis calçados.»
Pensei muito nas palavras de Pietro, e no dia seguinte passaos pela loja para retomar a conversa. Pietro não se tinha afastado da forja e disse-nos que não lhe tapássemos a luz.
Naquele dia contou-nos que em rapaz tinha sido serralheiro e que viajaram ele e o patrão procurando trabalho nos pátios e levando com eles a forja e o carvão. Para passar as montanhas tinham devido usar calçado de corda. Depois tinham trabalhado nas minas de carvão, tão longe que para voltar tinha sido necessário o comboio. enquanto contava dirigiu-se para a porta e olhou para a praça. «E o mar, Pietro, viste-o?» disse-lhe Gosto. Disse-nos então que tinha estado em Marselha e que alí o mar o tinha diante da porta. Olhou para a praça onde caia a sombra da casa e disse: «Como se estivesse aqui na praça. E movimento de dia e de noite. Mais do que no mercado grande». Cuspiu contra o sol e voltou para dentro.
Nós perguntamos-lhe como é a costa mas não sabia ou não percebeu o que queríamos. Disse que sim, que a água é verde e sempre em movimento e que continuamente espuma, mas que nunca dentro dele tinha estado e que não sabia como fosse a terra vista do largo. Contou-nos que os navios são de uma cor entre o vermelho e o negro e que o porto tem um odor como o das estações. Disse que carrega e descarrega mais carvão o porto em um dia do que carros de uvas todas as nossas colinas. E que os marinheiros, os estrangeiros também, se vestem como nós e não pensam que em voltar para casa. «O mar é cansativo», dizia. «É necessário nascer-se descalço.»
Veio o mês de Agosto, entre as primeiras e as segundas colheitas, quando no campo nada mais se faz e o dia dura ainda metade da noite. Sucedia que fosse para a cama quando fora era ainda dia e ouvia no caminho por debaixo do terraço os outros rir e a gente passar. Com qualquer desculpa era mandado para a cama. Se Gosto vinha à minha procura, diziam-lhe que era tarde e que já estava a dormir.
in Férias de Agosto
quinta-feira, 21 de julho de 2011
JORGE DE SENA: A Portugal
A PORTUGAL
Esta é a ditosa pátria minha amada. Não.
Nem é ditosa, porque o não merece.
Nem minha amada, porque é só madrasta.
...Nem pátria minha, porque eu não mereço
A pouca sorte de nascido dela.
Nada me prende ou liga a uma baixeza tanta
quanto esse arroto de passadas glórias.
Amigos meus mais caros tenho nela,
saudosamente nela, mas amigos são
por serem meus amigos, e mais nada.
Torpe dejecto de romano império;
babugem de invasões; salsugem porca
de esgoto atlântico; irrisória face
de lama, de cobiça, e de vileza,
de mesquinhez, de fátua ignorância;
terra de escravos, cu pró ar ouvindo
ranger no nevoeiro a nau do Encoberto;
terra de funcionários e de prostitutas,
devotos todos do milagre, castos
nas horas vagas de doença oculta;
terra de heróis a peso de ouro e sangue,
e santos com balcão de secos e molhados
no fundo da virtude; terra triste
à luz do sol calada, arrebicada, pulha,
cheia de afáveis para os estrangeiros
que deixam moedas e transportam pulgas,
oh pulgas lusitanas, pela Europa;
terra de monumentos em que o povo
assina a merda o seu anonimato;
terra-museu em que se vive ainda,
com porcos pela rua, em casas celtiberas;
terra de poetas tão sentimentais
que o cheiro de um sovaco os põe em transe;
terra de pedras esburgadas, secas
como esses sentimentos de oito séculos
de roubos e patrões, barões ou condes;
ó terra de ninguém, ninguém, ninguém:
eu te pertenço. És cabra, és badalhoca,
és mais que cachorra pelo cio,
és peste e fome e guerra e dor de coração.
Eu te pertenço mas seres minha, não!
Jorge de Sena, in Quarenta Anos de Servidão (1979)
Mais um poema de Guido Gozzano: La forza
La forza
A Mario B., lottatore
Bestialità divina, amico Mario,
quando affatichi i muscoli ben atti
e cingi e premi, ansando, e scuoti a tratti
il torso dell'atletico avversario!
Bene sai l'arte della forza. In vario
modo lo spossi e incalzi e pieghi e abbatti;
ti sussulta nei muscoli contratti
non so che desiderio sanguinario.
Gràvagli sopra, crudelmente bello,
con le scapole fa ch'egli riverso
tocchi la rena e "vinto" gli si gridi!
Ridevole miseria d'un cervello
quando il proteso già pollice verso
"Uccidi - griderei - Uccidi! Uccidi!"
A força
A Mario B., lutador
Bestialidade divina, amigo Mario,
quando afadigas os músculos bem aptos
e cinges e premes, ofegante, e a golpes bates
o torso do atlético adversário!
Bem conheces a arte da força. De vários
modos o evitas e persegues e dobras e abates;
freme-te nos músculos contraídos
não sei que desejo sanguinário.
Apoia-lhe em cima, cruelmente belo,
com as escápulas faz com que ele deitado
toque na areia e "vencido" se lhe grite!
Risível miséria de um cérebro
quando já teso o polegar está
"Mata - gritaria - Mata! Mata!"