quinta-feira, 11 de agosto de 2011

3 Poemas de Ruy Belo




MORS SEMPER PRAE OCULIS

Narro-me letra por letra para ti
e sou a breve palavra que tu deixas
como uma esteira branca
no céu azul do tempo
subo tijolo a tijolo até às tuas mãos
e sou dos edifícios da cidade
um dos que hão-de ruir amanhã
Tombaram-nos primeiros os avós
e chega já a vez dos nossos pais
Quando faltar um choupo
no caminho da infância que vai dar ao rio
receberemos no rosto a morte
com a surpresa do primeiro homem
Eu fui um dia um nome escrito numa pedra
onde as mulheres da minha aldeia
batiam a roupa que nos cobre no tempo
E depois já não soube mais nada
mas a primavera passou rente a mim:
a morte fora continuava

As duas mortes

A noite desce ainda somos jovens
Morrer é deixar isto a este lado
de nada serve já
o diálogo com vozes silêncios
na praia a nosso lado
Amanhã molharemos
o corpo noutro dia e beberemos
na bica costumada
onde poderá subitamente correr
uma canção conhecida

Cada dia mais morte que morte
haverá para nós no fim dos dias?

in Ruy Belo, Aquele grande rio Eufrates


Nós os vencidos do catolicismo

Nós os vencidos do Catolicismo
que não sabemos já donde a luz mana
haurimos o perdido miticismo
nos acordes dos carmina burana

Nós que perdemos na luta da fé
não é que no mais fundo não creiamos
mas não lutamos já firmes e a pé
nem nada impomos do que duvidamos

Já nenhum garizim nos chega agora
depois de ouvir como a samaritana
que em espírito e verdade é que se adora
Deixem-me ouvir os carmina burana

Nesta vida é que nós acreditamos
e no homem que dizem que criaste
se temos o que temos o jogamos
«Meu deus meu deus porque me abandonaste?»

in Ruy Belo, Homem de Palavras[s]


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