domingo, 14 de agosto de 2011

5 poemas de António Manuel Couto Viana

Despojo

E, agora, o que faremos?
A quem legar o que resta
Do simulacro de festa
Que tivemos?

Quem aproveita os detritos
De uma alegria forçada?
Quem confunde aflitos gritos
Com imposta gargalhada?

Iremos por onde alguém
Descubra os nossos farrapos.
Vês flores no jardim de além?
- Vejo sapos.




Estival


A imensa praia. O sol rubro, preciso.
E o mar de sempre, impetuoso e vário.
Meu corpo nu, aberto no solário,
Sorve o final do dia, lento e liso.

Estio é estar assim, sem pensamento;
Sentir apenas, sobre a pele doirada,
A saliva do mar, fria e salgada,
E o arrepio cálido do vento.

Nada mais. Quando muito, um vago olhar
Um vulto jovem, ágil, que se afasta,
Diluído na luz crepuscular.

E só porque o seu ritmo contrasta
Com a serena vibração do ar
E a paz da minha carne gorda e gasta.



Camilo Pessanha I


Um aroma subtil. Um lume. Um fumo leve.

Um delicado ritual.

O impulso breve que se descreve

Quase indiscreto, quase sensual.



A música interior apenas murmurada.

A luz difusa. Trémulas imagens.

Ondas de lua. Exílio. A flor despetalada.

Viagens.



Onde singra o navio sombreado de tédio?

Oscila. O servedouro de uma esteira.

A súbita emoção. O clarim do assédio

Desenrola a bandeira.



O ópio envolve o sonho num afago.

Já tudo tão distante! Tão inútil! Tão vago!





Camilo Pessanha II



Em campa rasa, a tampa de granito

Afonta-o no brasão de fidalguia,

No nome (com Doutor e com d'Almeida) escrito

Com erros de ortografia.



Quem roubou as correntes que o cercavam de ferro?

(Quieto o coração, no temor das algemas.)

Quem poluiu e rasgou o lençol do desterro

Que lhe envolveu, no enterro, os ossos e os poemas?



Ei-lo, já não ali, liberto da prisão,

Por fim a deslizar (assim outrora o quis)

Sem ruído, a sumir-se como um verme, no chão

E vê treva em um país

Perdido de segredo e solidão.




Távola Redonda



Poetas: vamos dar as mãos! De novo

Se escute em nós uma canção de ronda.

Poesia - única távola redonda

Com pão e vinho para todo o povo.



Quem tiver sede, beba deste vinho.

Quem tiver fome, coma deste pão.

Só o poeta vivo é nosso irmão;

P'ra ele, nada é fim, mas sim caminho.

Há flores no centro? Vou chamar-lhes fé.

Flori com elas vossa botoeira:

A voz do poeta é pura e verdadeira

Se - em Deus? se em si? Nos outros? - sonha e crê.

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