quarta-feira, 20 de julho de 2011

A António Pereira, Senhor de Basto, quando se partiu para a Corte co’a casa toda


Como eu vi correr pardaus
Por Cabeceiras de Basto,
Crecerem cercas e o gasto,
Vi, por caminhos tão maus,
Tal trilha e tamanho rasto,
Logo os meus olhos ergui
À casa antiga e à torre,
E disse comigo assi:
Se Deus nos não val aqui,
Perigoso imigo corre.
Não me temo de Castela,
Donde inda guerra não soa,
Mas temo-me de Lisboa
Que, ao cheiro desta canela,
O Reino nos despovoa.
E que algum embique e caia
(Afora vá mau agouro!)
Falar por aquela praia
Da grandeza de Cambaia,
Narsinga das torres d’ouro.
Ouves, Viriato, o estrago,
Que vai dos teus costumes?
Os leitos, mesas e os lumes,
Todo cheira: eu óleos trago;
Vem outros, trazem perfumes,
E ao bom trajo dos pastores
Com que saíste à peleja
Dos Romãos tão vencedores,
São mudados os louvores:
Não há quem t’haja enveja.
Entrou, há dias, peçonha
Clara pelos nossos portos,
Sem que remédio se ponha:
Uns dormentes, outros mortos,
Alguém polas ruas sonha.
Fez no começo a pobreza
Vencer os ventos e o mar,
Vencer quase a natureza:
Medo hei de novo à riqueza
Que nos venha a cativar.
(…) Direis, e eu não vo-lo nego,
Mas quereis também que diga?
Este mundo é armado em briga,
Não busqueis nele assossego,
Nem nûa alta ermida antiga.
Todavia há diferenças
Antre o de cá e o de lá:
Cá, nas mais das desavenças,
Éreis mestres das sentenças;
Para ond’is outrem as dá.
Tereis em troca manjares,
Composições delicadas,
ûas por outras grosadas,
Pelos tempestuosos mares
A grão perigo buscadas.
Convites de quem convida!
Amostram-vos suas tendas:
Quanta cousa i é perdida!
Ceas imigas da vida,
Imigas más das fazendas!
Disto o cheiro, disto a cor,
Que preço não tem igual:
Milagres de Portugal!
— Cousas de tanto sabor
para saberem tão mal!
Ao reino cumpre em todo ele
er a quem seu mal doa,
Não passar tudo a Lisboa,
Que é muito o peso, e com ele,
Mete o barco n’água a proa.

Vereis barcos ir à vela
Uns que vão, outros que vem,
Como que se desavem
C’ûa viração singela.
Tanta força a arte tem.
Os marinheiros vadios,
Que vilmente a vida apreçam,
Polas cordas dos navios
Volteam como bugios
Inda que vos al praceçam.
Não hei por perda esta leve,
Que sejam palavras tudo.
— Mas ao coração acudo!
Senão, dizei: quem se atreve
À dor esperá-la mudo?
São elas, porém, já muitas:
Fê-las ir crecendo a mágoa!
Lembro-vos as vossas fruitas,
Lembro-vos as vossas truitas,
Que andam já por vossas n’água.


Sá de Miranda

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