sexta-feira, 29 de julho de 2011

A poesia de Liutprando de Cremona - I

reprodução de fólio da Antapodosis

Liutprando ( Bispo de Cremona) (Pavia, 920 ? - 972) foi um historiador, bispo e diplomata ao serviço do Sacro Império Romano e autor de obras em latim medieval. Liutprando de Cremona deixou-nos três obras de cariz histórico: a Antapodosis, seu rerum per Europam gestarum, Libri VI (relato histórico, com especial incidência na península itálica e cobrindo o arco de tempo que vai de 887 a 949), a Relatio de legatione Constantinopolitana ad Nicephorum Phocam (relato da sua embaixada junto do Basileus bizantino Nicéforo Phocas e que cobre os anos de 968-69) e, por último, o Liber de rebus gestis Ottonis Magni Imperatoris, também conhecido pelo nome de Historia Ottonis (crónica de seu patrono, o imperador Oto I, cobrindo os anos 960 a 64). Convém aqui precisar uma questão: o conceito de história para um homem do século X é substancialmente diverso daquele a que estamos habituados hoje. Esta afirmação é válida quer quanto ao conteúdo, à matéria narrada e aos pressupostos histórico-culturais que presidiram à sua elaboração; quer quanto à forma, ou melhor, há diversidade de formas usadas na sua elaboração. Assim sendo, não é de espantar que, inseridos no corpo narrativo da Antapodosis e, já em menor número, da Relatio de legatione Constantinopolitana ad Nicephorum Phocam, o leitor possa deparar com momentos de poesia, de métrica muito irregular, mas que, pelo seu carácter inovador, constituem um pequeno tesouro esquecido da literatura europeia.

Falamos de esquecimento e com justa razão. Efectuando uma rápida pesquisa no PORBASE encontramos um total de quatro registos relativos à obra de Liutprando de Cremona. A estes se poderia juntar a presença em Portugal de edições dos Monumenta Germaniae Historica. Nenhuma edição portuguesa, nenhuma edição facilmente acessível. A presente tradução destes fragmentos reveste-se então de uma oportunidade única de dar a conhecer a obra de tão prodigiosa figura da história da Europa. O critério adoptado será o de procurar um texto tão fluido quanto possível no estrito respeito do sentido original. Devido à enorme diferença entre as duas línguas e entre os esquemas métricos não serão tidas em conta aqui essas questões. Tal não implica que não se procure manter uma mancha gráfica semelhante à do texto original que republicamos. Agradecem-se sugestões de tradução que possam levar à melhoria das mesmas.

Cada um dos excertos traduzidos será igualmente sucedido por uma breve mas necessária contextualização histórica.


Ipse qui condam superare gentes

impias bello solitus cruento

novimus nunc rex dederis popello

morte tu quantas propria ruinas.

Turba certatim viduata karo

rege iam cesset lacrimare quando

alter exurgit venerandus orbi

filius patri similis cluenti

Otto rex gentes dicione magna

qui premet pacemque feret beatam.

Quicquid Heinrici periit recessu

praestitit claro populis hic ortu

blandus et mitis patiensque sanctis

pestifer durus rabidusque saevis.

Bella nonnullis tibi sunt gerenda

ex quibus nomen referens in astra

cuncta calcabis pedibus per orbem

quae premit tardus radians Bootes

et quibus nomen dedit Hesper almus

Lucifer rursus vocitatus idem

surgit Eoo properans corusco.


E tu que superar as gentes

ímpias de cruenta guerra costumavas,

ora sabemos, ó Rei, quanto ao povo deste

com tua morte grandes males.

Que a competidora turba viúva do caro

rei ora cesse de chorar, que

outro de veneranda orbe digno inicia,

filho do pai famoso par,

Oto rei, que de magna autoridade as gentes

submeterá e paz serena fará.

Quanto com a morte de Enrico feneceu

ao povo devolveu, de nobre linhagem,

doce, suave e paciente com os pios,

pestífero, duro e raivoso com os ímpios.

Por ti as guerras geradas contra tantos,

cujos nomes aos astros elevando

com os pés calcarás por toda a Orbe

que o lento Boieiro cobre radioso

e a quem Espero o nome deu, o grande

Lucífer por sua vez chamado

s'apresta a surgir do coruscante Eoo.


O texto refere-se ao falecimento de Enrico da Saxónia em 936 e à eleição de Oto I como Rei dos Germanos e futuro Imperador do Sacro Império Romano. O Boieiro é uma constelação, por Espero entenda-se a designação mitológica do Poente, por Lúcifer a estrela da manhã e Eoo designa um dos cavalos que puxam o carro do sol conduzido mitologicamente por Hélio.

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