terça-feira, 19 de julho de 2011

A mercearia do Sr. Ângelo Custódio



Saiu da Igreja com um passo inseguro e o reflexo dos mistérios gozosos espelhado no olhar. A mantilha preta sobre os ombros e o véu de renda sobre a cabeça davam-lhe um ar de rata de sacristia que só encontrava rival nas botinas da queirosiana Juliana. Atravessou o sagrado passando por entre as tílias e os plátanos do adro, ladeou o cemitério onde a forma verticalmente longilínea dos ciprestes indicava vagamente uma via ascensional futura. Benzeu-se, juntamente com as suas companheiras de ladainhas, novenas e má-língua, ao passar diante das alminhas postas na encruzilhada onde, há já mais de dez anos, um marido adúltero tinha sido morto pelo seu congénere enganado. — “Aquilo é que é uma badalhoca!” — exclamou a D. Mimi referindo-se à causadora de tão grande falatório. —“As mulheres são a encarnação do Diabo!” — sentenciou a D. Ester recordando-se vagamente do sermão que o Senhor Abade tinha acabado de propinar sobre uma figura obscura chamada Eva. — “Lá isso são! Mas o coitado do Manuel lá foi prestar contas a Deus só por ser um bocadinho maluco por mulheres. Não é assim minha senhora?” — perguntou a criada Etelvina volvendo beatificamente os olhos ao empíreo. — “Temos que prometer cinco rosários, uma ida a Fátima e uma resma de ladainhas a Nossa Senhora....” — “Abençoado seja o Vosso nome!” — interromperam em coro esganiçado e devotamente polifónico as restantes beatas. — “... para evitar o fim do mundo!” — concluiu a D. Fernanda cruzando beatificamente as mãos sobre o peito. E lá foram andando, fazendo trup, trup como o burro d’O Malhadinhas, até à vista do cruzeiro onde, entre persignações e um último comentário sobre a sem-vergonha da filha do Zé Maria do Prado que tinha tido o descaramento de ir à Santa Missa com uma saia dois milímetros e meio por cima do joelho, se despediram.
D. Fernanda, curvada pelas mortificações impostas pelos exercícios espirituais lá seguiu, com o seu passo miudinho e histericamente nervoso, na direcção da mercearia do Sr. Ângelo Custódio onde se encontravam iguarias capazes de elevar um pobre mortal que não seja figura de proa ao Paraíso. Avistou finalmente a augusta porta onde os bacalhaus pendurados lateralmente lhe lembraram as asas protectoras de um Anjo disposto a acolhê-la no seu regaço. Ladeou os sacos de feijão e grão-de-bico, e, tecendo profundas considerações teologais sobre a tripa seca que se encontrava empilhada ao lado das leguminosas, entrou pigarreando para anunciar a sua presença. O Sr. Ângelo Custódio interrompeu por um momento a ínclita tarefa de afiar o lápis de duas cores com a longa unha negra do polegar para, ostentando um sorriso e uma afabilidade celestiais, a saudar: — “Bom dia D. Fernanda! Já viu o bonito dia que Deus nos deu?” — “Seja feita a Sua vontade per omnia sæcula sæculorum!” — “Ámen!”: apressou-se a responder o Sr. Ângelo Custódio elevando as mãos de modo a formar uma coroa em torno do cartaz onde se encontrava escrito um “Por culpa de alguém, não se fia a ninguém!” destinado a demover alguns caloteiros de pecar por avareza. — “Então D. Fernanda, em que é que a posso ajudar?”: perguntou o Sr. Ângelo Custódio esfregando as sapudas mãos. — “Ai Sr. Ângelo, eu nem sei. Talvez um meio-litro dessas ervilhas que são tão redondinhas que até parecem as contas de um rosário...” — “...e só de vê-las faz bem à alma!”: apressou-se a concluir o merceeiro que já conhecia a antífona. — “Tenho aí um chouriço capaz de salvar um pecador.”: insinuou o vendedor. — “Nem pense nisso que estamos na Quaresma!”: exclamou horrorizada a D. Fernanda com um tremor na voz. — “Talvez um bacalhauzinho?” — “Ai Sr. Ângelo, tenha vergonha e não me proponha coisas que cheiram a luxúria e a devassidão!”: recusou D. Fernanda possuída por um sentimento de temor divino. — “O atum é em óleo ou em azeite?” — “Em azeite D. Fernanda.”: apressou-se a esclarecer o merceeiro. — “Então está bem porque me faz lembrar o Monte das Oliveiras. Arranje-me duzentos gramas, se faz favor.” — “Tenho aí uns figos nacionais que são uma bênção para as hemorróidas!” — “Eu até nem costumo comer figos porque a figueira é a árvore em que Judas se enforcou, mas se o Sr. Ângelo me garante que são nacionais... Arranje-me aí um quarto de quilo por favor.” E o merceeiro lá ia aviando quando a D. Fernanda, abrindo o porta-moedas em que guardava o terço, os trocos e a coroa, reparou que não tinha trazido dinheiro. — “Ai Sr. Ângelo, que vergonha, esqueci-me do dinheiro em casa. E agora?” — “Não se preocupe que eu assento e quando puder passa para pagar.” —: disse, com um sorriso o merceeiro. E, sem se esquecer de agradecer, a D. Fernanda lá foi para casa enquanto o Sr. Ângelo Custódio, que não tinha computador nem rol das almas, lá ficou a escrever no seu “deve e haver”.


Ricardo Castelo Branco

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